Não se pode falar em Quaresma sem fazer referência à conversão. A Igreja, todos os anos, convida seus fiéis a fazerem um retiro espiritual de quarenta dias tomando para si a experiência de Jesus no deserto quando se preparava para sua vida pública. O tempo litúrgico quaresmal exorta-nos a um profundo exame de consciência diante de Deus, diante de nós mesmos e diante da pessoa do próximo e da sociedade onde vivemos, para que haja uma mudança de atitudes de “homens velhos” para “homens novos” a partir da Prática da Palavra de Deus. Nesse sentido, a Igreja do Brasil oferece, todos os anos, como instrumento de conversão, a Campanha da Fraternidade. Em 2019, somos convidados a contemplar a realidade das políticas públicas, cujo tema é “Fraternidade e Políticas Públicas” e o lema “Serás libertado pelo direito e pela justiça” (Is 1, 27). Longe de ser um evento político, quer ser um momento de reflexão entre irmãos, homens e mulheres de fé e de boa vontade que, impulsionados pelo amor fraterno, preocupam- -se com o bem-estar comum através do exercício do direito e da justiça para todos.
“Almejamos, alicerçados na Palavra de Deus, a nossa conversão a cada dia e, consequentemente, desejamos ser protagonistas na transformação da sociedade para que nela haja garantia de bem estar para todos e políticas públicas em benefício do bem comum” (Apresentação do Texto Base).
Na sagrada escritura, especificamente no Antigo Testamento, aparece o tempo do profetismo sempre associado ao discurso de conversão. O profeta na Antiga Aliança era considerado um homem enviado por Deus ao povo de Israel com a missão de denunciar e anunciar, em nome do Altíssimo, tudo o que dizia respeito à justiça divina e à rebeldia daquela gente. O paradigma profético sempre foi a Lei dada a Moisés; cabia ao profeta exortar veementemente o povo a cumprir o que foi prescrito por Deus como única condição para ser feliz e alcançar a sua soberania. Em determinada época, os profetas eram suscitados toda vez que existia carência das práticas do direito divino e da justiça no relacionamento interpessoal. O foco das pregações dos profetas era sempre a chamada de atenção para os desvios cometidos e a exortação ao abandono dos maus costumes em relação à idolatria e à injustiça e voltar-se imediatamente para Deus.
Com a vinda de Jesus Cristo ao mundo, a Lei e o profetismo foram por Ele plenificados. Se para o povo de Israel, no Antigo Testamento, a esperança era a paz definitiva, principalmente em épocas de tiranias, exílios, explorações, idolatrias etc., no Novo Testamento, Cristo anunciou o Reinado de Deus como manifestação da paz, oferecendo um testemunho de reconciliação e pregando o amor fraterno. Ele deixou para os seus discípulos um legado que consiste no amor ao próximo: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 13,34); “Ama o teu próximo como a ti mesmo” (Lc 10, 27) e a máxima da nova Lei dita como regra de ouro: “Tudo quanto quereis que as pessoas vos façam, assim fazei-o vós também a elas, pois esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7,12).
Para Cristo, justiça e direito são frutos da misericórdia. Por isso, Ele se dedica, preferencialmente, aos mais indefesos. A Igreja, como sua porta voz e continuadora da sua missão salvífica sobre a Terra, contempla todos, mas, principalmente, aqueles que mais necessitam. As políticas públicas são os meios mais eficazes de fazer com que a justiça prevaleça e a misericórdia seja exercida. Proteger e favorecer os direitos aos enfermos, aos pobres, aos deficientes, aos excluídos, às minorias, como também favorecer o bem-estar a todos indistintamente é a forma mais eficaz de se exercer a justiça e o direito de cada cidadão.
O cristianismo, seguindo os passos do seu Mestre, entendeu ao longo da sua história que a justiça de Deus é mais que uma consolação individual, mas um acontecimento universal, cujo ponto culminante e decisivo se realiza na própria pessoa de Jesus Cristo. Isso é comprometedor, pois requer uma conversão por parte daqueles que se fazem seus seguidores. É necessária uma adesão pessoal, cuja consequência implica numa mudança de mentalidade e atitudes (conversão).
A Igreja, como a representante de Cristo no mundo, com seu carisma profético, deu continuidade àquilo que Jesus deixou como legado e, aos poucos, foi tomando consciência da justiça social, especialmente após a publicação da Encíclica Rerum Novarum de Leão XIII e da Encíclica Quadragesimo Anno de Pio XI, expressões como “justiça social” ou “justiça do bem comum” se tornaram conceitos chave na moral social católica e uma especial atenção passa a ser dada à proteção dos direitos dos membros mais frágeis da sociedade civil. A justiça social ganha ressonância com as Encíclicas Mater et Magistra e Pacem in Terris de João XXIII. Na Populorum Progresso de Paulo VI é retomado o pensamento do Vaticano II a respeito do direito de desenvolvimento de todos e defende a construção da paz a partir da solidariedade e da defesa da liberdade e da dignidade humana. Não podemos deixar de citar também, neste contexto, a Centesimus Annus de João Paulo II e, na atualidade, a Laudato Si do Papa Francisco.
A Igreja no Brasil, através do seus Bispos, pastores e sucessores dos Apóstolos de Cristo, quando pensou em lançar uma Campanha da Fraternidade com o tema Políticas Públicas, quis chamar atenção dos cristãos e de toda a sociedade brasileira para a necessidade urgente de ações e programas que devam garantir os direitos humanos. O texto-base da Campanha da Fraternidade adverte para o fato de que “falar de “Políticas Públicas” não é falar de “política partidária” ou de “eleições”, não é ficar a favor de uns e contra outros, mas significa se referir a um conjunto de ações a serem implementadas pelos gestores públicos.” “Todas as pessoas e instituições devem se sentir protagonistas das iniciativas e ações que promovam o conjunto das condições de vida social que permitem aos indivíduos, famílias e associações alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição”, diz a mensagem vinda do Vaticano especialmente para a abertura desta Campanha da Fraternidade.
A Campanha da Fraternidade é uma atividade ampla de evangelização que pretende ajudar os cristãos e pessoas de boa vontade a vivenciarem a fraternidade em compromissos concretos, provocando, ao mesmo tempo, a renovação da vida da Igreja e a transformação da sociedade, a partir de temas específicos. Na Diocese de Cruz das Almas, realizamos um seminário onde reunimos sacerdotes, diáconos, religiosas, prefeitos, vereadores, secretários municipais e uma parcela significativa do povo de Deus e, juntos, refletimos sobre esse tema que deve interessar a todos. Foi um momento muito proveitoso. Torçamos que gere bastantes frutos para o bem da sociedade e, principalmente, em favor dos mais vulneráveis.
Por fim, é necessário lembrar que o tempo quaresmal passa, mas a Campanha da Fraternidade continua até o próximo ano quando for lançado outro tema. Precisamos, na condição de cristãos, de uma conversão perene para agirmos como cidadãos transformadores da realidade social.
Desejo a todos uma santa Quaresma e, desde já, uma feliz Páscoa.
+ Antonio Tourinho Neto.
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